Translate

(figura do cabeçalho:www.cpt.com.br)

segunda-feira, fevereiro 15, 2010


DISTÚRBIO HEMOSTÁTICO POR VENENO DE SERPENTE

Nota: Este tópico é a reprodução do item 8.2.6.3 do livro Emergências Nas Doenças Hemorrágicas, página 145, Editora Centro de Hematologia Santa Catarina, publicado em 1979 e de autoria de Luiz Carlos Famadas. Resolvemos reproduzi-lo pela sua valorização decorrente, principalmente, da colaboração da saudosa Dra. Linda Nahas, reconhecida autoridade mundial no assunto. A Dra. Linda Nahas era pesquisadora do Instituto Butantan de São Paulo e, além da orientação para a confecção desse tópico, fez uma revisão cuidadosa e efetuou algumas correções.
Queremos ressaltar que a bibliografia foi colocada no final desse texto, ao contrário dos outros tópicos onde a bibliografia está em outro item.

Coagulação intravascular disseminada e fibrinólise em pacientes picados por serpentes venenosas
Os venenos de serpente mostram atividades fisiopatológicas de tipo coagulante, proteolítica, hemolítica e neurotóxica (17).
Faremos, apenas, comentários relativos à ação dos venenos no mecanismo hemostático e para facilitar a exposição, apresentaremos a seguir uma subdivisão, por nós idealizada, com o resumo esquematizado na Figura 1.


Relacionado com o mecanismo da coagulação:

a) Atuação direta sobre o FX (10)
b) Atuação direta sobre a protrombina (gerando trombina) (3, 24)
c) Atuação direta sobre o fibrinogênio (produzindo fibrina) (5,23)

Relacionado com a plaqueta:

a) Consumo de plaquetas pela ativação da coagulação (11, 24)
b) Atuação direta sobre as plaquetas (8, 1)

Relacionado com o mecanismo fibrinolítico:

a) Secundária à formação da fibrina (fibrinólise de trombo) (10)
b) Ativação direta do mecanismo fibrinolítico (fibrinólise primária) (13)

Relação com o vaso:

Lesão da parede vascular (proteólise) (7)





Figura 1: Diferentes modos de ação dos venenos de serpente no mecanismo hemostático. A = ativando o FX, B = ativando o FII, C = atuando diretamente sobre o fibrinogênio, D = agregando as plaquetas, E = ativando diretamente o mecanismo fibrinolítico, F = lesando o vaso sangüíneo (proteólise)
Um mesmo veneno pode agir em pontos diversos do mecanismo hemostático e com intensidade variável, dependendo essa característica do tipo do veneno e da sua dose (10, 21).
Existia muita contradição acerca do modo de ação do veneno (6) e Rosenfeld diz que isso se devia ao fato de que diferentes concentrações foram usadas nas pesquisas in vitro e in vivo(21). Afirma, ainda, esse autor, que o melhor modo para se entender a ação dos venenos de serpente é analisar o típico veneno coagulante e proteolítico - o da Bothrops jararaca. O veneno botrópico ao penetrar lentamente na circulação desfibrina o sangue, tanto pela geração de trombina como pela ação direta sobre o fibrinogênio. Se a penetração é rápida e a dose total é pequena, essa desfibrinação é precedida de hipercoagulabilidade que dura alguns minutos. Se a dose é elevada, e pela via venosa, há morte rápida por coagulação intravascular maciça dentro de minutos, seguida de liquefação do sangue pela fibrinólise posterior (20). Se a dose injetada é superior a 0.4 mg/kg, ocorre coagulação imediata e maciça, produzindo morte em poucos minutos (21). Assim, se compreende que o encontro de sangue incoagulável em indivíduo picado por serpente, é indício de que penetrou na circulação dose razoável de veneno (igual ou superior a 0.1 mg/kg) (20).
Importante trabalho foi desenvolvido por Nahas e cols. (10) com os venenos das seguintes serpente: Echis colorata, Bothrops atrox, Bothrops jararaca, Crotalus terrificus, Akistrodon rhodostoma, Trimeresurus purpureomaculata, Bitis gabonica e Vipera russelli. Os resultados permitiram definir a intensidade e os diversos pontos de ação no mecanismo de coagulação conforme demonstra o Quadro 1. Esses autores evidenciaram, ao usarem veneno de E. colorata, ação fibrinogenolítica rápida e potente, ou seja, ativação direta do mecanismo fibrinolítico e, posteriormente, Rechnic e cols. (13) conseguiram separar uma fração fibrinolítica desse veneno.


TIPO DE SERPENTEATIVAÇÃO DO FATOR XATIVAÇÃO DO FATOR IIAÇÃO DIRETA SOBRE O FATOR I
V. russelli++++00
B. atrox+++0+ *
B. jararaca++0++ *
E. colorata++++++0 *
A. rhodostoma+0++++ *
C. terrificus00+
T. purpureomacu-
lata
00+ *
B. gabonica000
Quadro 1: Ação dos venenos de alguns tipos de serpentes segundo Nahas e cols. (10). (*) = Ativação do mecanismo fibrinolítico

Weiss e cols. (24) estudaram paciente picado por E. carinatus que apresentou trombocitopenia (mínimo de 24.000/mm³), fibrinogênio em 5 mg/100ml, prolongamento do tempo de protrombina, anemia (volume globular mínimo de 23%), hemácias fragmentadas, presença de monômeros de fibrina, queda do FV e do FVIII. A resposta à heparina foi rápida com bloqueio da coagulação e da agregação plaquetária. Os autores concluem que a agregação dependeu da ação da trombina e que as alterações sangüíneas foram conseqüência da ação direta do veneno sobre o FII.
Reid e cols. (14, 15) verificaram que a incoagulabilidade do sangue produzida pela A. rhodostoma, deve-se, principalmente, à ação direta do veneno sobre o fibrinogênio com liberação apenas do fibrinopeptídio A. Silberman e cols. (22, 2) estudaram fração polipeptídica desse veneno (Ancrod) e verificaram que a queda do fibrinogênio no plasma decorre da formação de fibrina com posterior lise. Fato idêntico parece ocorrer com os venenos da C. adamanteus (9, 23) e da E. colorata (4).

Hasiba e cols. (8) descreveram um caso de picada de C. horridus horridus que mostrou intensas equimoses na extremidade correspondente à picada, petéquias generalizadas, grande hematoma na pálpebra, profunda trombocitopenia com hipofibrinogenemia e altos títulos de PDF. Não houve evidencia de formação da trombina e as alterações in vitro foram controladas com antiveneno mas não com heparina. Houve lise rápida do coagulo e as hemácias não se mostraram fragmentadas no sangue periférico, o que fala contra a deposição de fibrina nos vasos. O estudo in vitro com veneno da mesma espécie mostrou ação agregante sobre as plaquetas, coagulação do fibrinogênio e efeito fibrinolítico. A trombocitopenia deveu-se à ação direta do veneno sobre as plaquetas. Por estas razões, o autor denominou o quadro de "semelhante à coagulação intravascular disseminada".

Rechnic e cols. (12) estudaram a ação do veneno da E. colorata em cobaias e observaram que a desfibrinação se dá por dois modos: ativação direta do mecanismo fibrinolítico na circulação (fibrinólise primária) e desencadeamento da fibrinólise no trombo de fibrina (fibrinólise secundária). Se pequena quantidade de veneno é injetada, esse último mecanismo é o mais importante para a desfibrinação e, por ser a hipercoagulabilidade de pouca intensidade, nenhum trombo é encontrado. Dizem esses autores ser de importância primária a lesão da parede vascular produzida pelo veneno e que os distúrbios da coagulação contribuem para agravar a hemorragia.

As serpentes venenosas existentes no Brasil pertencem a 4 gêneros: Crotalus, Bothrops, Micrurus e Lachesis (20). As espécies que provocam a maior parte dos acidentes são:


Crotalus (5 espécies):

C. durissus terrificus (cascavel)

Bothrops (32 espécies):

B. jararaca (jararaca)
B. alternata (urutú-cruzeiro)
B. neuwiedi (jararaca pintada)
B. atrox (caiçaca)
B. cotiara (jararaca preta)

Micrurus (23 espécies):

(Corais venenosas)

Lachesis (2 espécies):

L. muta muta (surucucu, surucutinga ou surucucu pico de jaca)

Por ordem de freqüência as causadoras de acidentes são: B. jararaca, C. durissus terrificus, B. jararacussu, B. alternata, B. neuwiedi e B. atrox. As picadas de corais venenosas são muito raras.

No Hospital Vital Brasil, do Instituto Butantan, em São Paulo, cerca de 90% dos atendimentos por picadas de serpentes venenosas referem-se ao gênero Bothrops. A mortalidade dos indivíduos picados por este tipo de serpente, quando não recebem antiveneno, é de cerca de 8% caindo para 0.768% com a soroterapia. A percentagem das picadas por cascavel é de 8.59% com 72% de mortalidade para os não tratados com antiveneno e 11.49% para os que receberam esse tratamento (18).

Tratamento:

1 - Afastamento da causa
Consiste na neutralização da ação do veneno e na tentativa de diminuir a quantidade do mesmo, através de sucção no local da picada nos primeiros minutos. Não forneceremos detalhes porque foge às finalidades desse tópico, sendo muitas as publicações nacionais, de grande importância, que tratam desse assunto com suas peculiaridades. Aconselhamos, para tal, consultar os trabalhos de Rosenfeld (17, 16). Esse autor indica esquema de soroterapia com bases na intensidade da sintomatologia o que, em última análise, depende da quantidade de veneno inoculado:

a) Casos com sintomatologia discreta: 50 unidades por via sub-cutânea.
b) Casos com sintomatologia intensa: 50 unidades por via sub-cutânea e 50 unidades por via venosa.
c) Casos de máxima gravidade: 150 a 300 unidades como dose total, sendo 70 unidades por via sub-cutânea e o restante por via venosa.


Rosenfeld (16) apresenta dois graus extremos da sintomatologia que servem para avaliar a gravidade do caso e orientar a terapêutica com antiveneno:

§ Benigno - depois de duas horas, sangue coagulável. Pequena reação local. Não há risco de vida nem de necrose.

§ Grave - sangue incoagulável. Reação local moderada ou intensa. Possibilidade de necrose local. Risco de vida por choque com colapso periférico dentro dos primeiros três dias e, também, por hemorragia renal intensa, ou anúria, ou derrame no sistema nervoso, ou acidente vascular cerebral.

2 - Correção da hipovolemia
(Mesmo item do tratamento da coagulação intravascular disseminada)

3 - Reposição dos fatores e das plaquetas
Após terapêutica com antiveneno, a regeneração do fibrinogênio ocorre em pouca horas, tanto no homem como nos animais de experiência (19). Se houver necessidade de elevar os fatores da coagulação e das plaquetas, seguir as mediadas apresentada no tratamento geral da coagulação intravascular disseminada.

4 - Anticoagulação e antifibrinólise
Como foi mostrado anteriormente, os venenos de serpente podem gerar trombina e/ou atuar diretamente sobre o fibrinogênio levando à formação de uma fibrina que difere daquela formada pela trombina. Pela ação do veneno, dá-se a liberação apenas do fibrinopeptídio A. Esse tipo de monômero sofre somente polimerização longitudinal e é mais suscetível à ação lítica da plasmina.

É fato conhecido que a heparina não tem capacidade de bloquear a ação direta do veneno sobre o fibrinogênio (11). Quando o veneno gera trombina, a heparinização pode ser seguida da elevação dos fatores e das plaquetas no sangue, conforme observaram Weiss e cols. (24) em paciente picado por Echis carinatus.

Nahas e cols. (11) não conseguiram o bloqueio in vivo, por meio da heparina, da síndrome de desfibrinação produzida pelo veneno da B. jararaca que além de atuar diretamente sobre o fibrinogênio, gera trombina ao ativar o FX. Concluíram, desse modo, que a heparinoterapia não deve ser usada na picada de serpente.

Hassiba e cols. (8) estudaram um paciente picado pela C. horridus horridus que apresentou alterações catalogadas como pseudo coagulação intravascular disseminada (ausência de hipercoagulabilidade) e comprovaram in vitro controle das alterações sangüíneas pelo antiveneno mas não pela heparina. São raros os casos de benefício com tal tratamento já que uma das ações mais importantes dos venenos de serpente se faz diretamente sobre o fibrinogênio e, como vimos, essa ação não é neutralizada pela heparina.

Como conseqüências da ação direta do veneno sobre o fibrinogênio temos a desfibrinogenaçao e a circulação de produtos de degradação devido à lise da fibrina formada. Podemos considerar ambas alterações como antagônicas à hipercoagulabilidade o que acarretam certa proteção ao organismo.

Por outro lado, a severidade do quadro clínico não está relacionada à alteração sangüínea e sim a outros efeitos do veneno que são prontamente neutralizados pelo antiveneno (11).

Bibliografia

1 - Bounameaux, J,: Action de la Thrombine et de la Reptilase Sur la Métamorphose Visqueuse des Plaquettes de Diverse Espécies Animales. Rev. Franç. Etud Clin. Biol. 4:54,1959.

2 - Collins, J. A.: Massive Blood Transfusion. Clin. Haematol. 5:201,1976.

3 - Denson, K. W. E.; Borrett, R. and Biggs, R.: The Specific Assay of Prothrombin Using the Taipan Sake Venoms. Br. J. Haematol. 21:219,1971.

4 - Divilansky, A. and Biran, H.: Hypofibrinogenemia after Echis colorata Bite in Man. Acta Haematol. (Kbh) 49:123,1973.

5 - Eagle, H.: The Coagulation of Blood by Snake Venoms and its Physiological Significance. J. Exp. Med. 65:613,1937.

6 - Fainaru, M.; Manny, N. and Hershko, C.: Defibrination Following Echis colorata Bite in Man. Isr. J. Med. Sci. 6:720,1970.

7 - Gitter, S.; Levi, G.; Kochwa, S. et al.: Studies of the Venom of Echis colorata. Am. J. Trop. Med. 9:391,1960.

8 - Hassiba, V.; Rosenbach, L. M.; Rockwell, D. et al.: DIC-Like Syndrome After Envenomation by the Snake Crotalus horridus horridus. N. Engl. J. Med. 292:505,1975.

9 - Mc Creary, T. and Wurzel, H.: Poisonous Snake Bites: Report of a Case. JAMA. 170:268,1959.

10 - Nahas, L.; Denson, K. W. E. and Macfarlane, R. G.: A Study of the Coagulant Action of Eight Snake Venoms. Thromb. Diath. Haemorrh. (Stuttg). 12:355,1964.

11 - Nahas, L.; Kamiguti, A. S.; Rzeppa, H. W. et al.: Effects of Heparin on the Coagulant Actino of Snake Venoms. Toxicon 13:457,1975.

12 - Rechnic, J.; Trachtenberg, P.; Casper, J. et al.: Afibrinogenemia and Thrombocytopenia in Guinea Pigs Following Injection of Echis colorata Venom. Blood 20:735,1962.

13 - Rechnic, J.; Vries, A.; Perlwertter, C. et al.: Coagulation Factors in the Venoms of Vipera palestinae and Echis colorata. A Preliminary Report. Bull. Res. Coun. Israel E. 8:81,1960.

14 - Reid, H. A.; Chan, K. E. and Thean, P. C.: Prolonged Coagulation Defect (Defibrination Syndrome) in Malayan Viper Bite. Lancet. 1:621,1963.

15 - Reid, H. A.; Thean, P. C. and Chan, K. E.: Clinical Effects of Bites by Malayan Viper (Agkistrodon rhodostoma). Lancet. 1:617,1963.

16 - Rosenfeld, G.: Moléstias por Venenos Animais. Pinheiros Terapêutico. 17:3,1965.

17 - Rosenfeld, G.: Syntomatology, Pathology, and Treatment of Snake Biter in South América. In: Bucheri, W.; Buckley, E. and Deulofeu, V.: Venomous Animals and Their Venoms. New York, Academic Press INC, 1971. Cap. 34 V. 2 p. 430.

18 - Rosenfeld, G.: Animais Peçonhentos e Tóxicos do Brasil. In: Lacaz, C. S.; Baruzzi, R. G. and Siqueira, Jr.: Introdução à Geografia Médica do Brasil. S. Paulo, Edgard W. Blucher Ltda, 1972, Cap. 19, p. 430.

19 - Rosenfeld, G.; Kelen, E. M. A. and Nahas, L.: Regeneration of Fibrinogen After Defibrination by Bothropic Venom in Man and in Dogs Relationship with Cloting and Bleeding Times. Rev. Clin. S. Paulo. 34:36,1958.

20 - Rosenfeld, G.; Nahas, L.; Cillo, D. M. et al.: Envenenamentos por Serpentes e Escorpiões. In: Cintra, P.; Ramos, J. and Valle, J. R.: Atualização Terapêutica - 8ª Edição, Livraria Editora Artes Médicas Ltda., S. Paulo, 1970. p.984.

21 - Rosenfeld, G.; Nahas, L. and Kelen, E. M .A.: Coagulant, Proteolytic and Hemolytic Properties of Some Sanke Venoms In: Bucherl, W.; Buckley, E. and Deulofeu, V.: Venomous Animals and Their Venoms. New York, Academic Press INC, 1967, V.1, Cap.9, p.229.

22 - Silberman, S.; Bernik, M. B.; Potter, E.V. et al.: Effects of Ancrod (Arvin) in Mice: Studies of Plasma Fibrinigen and Fibrinolytic Activity. Br. J. Haematol. 24:101,1973.

23 - Weiss, H. J.; Allan, S. and Davidson, E.: A Fibrinogenemia in Man Following the Bite of a Rattlesnake (Crotalus adamanteus). Am. J. Med. 47:625,1969.

24 - Weiss, H. J.; Phillips, L. L.; Hopwell, W. S. et al.: Heparin Therapy in a Patient Bitten by Saw-scaled Viper (Echis carinatus), Snake Wose Venom Activates Prothrombin. Am. J. Med. 54:653,1973.
Powered By Blogger