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segunda-feira, fevereiro 15, 2010





DISTÚRBIOS HEREDITÁRIOS DA COAGULAÇÃO

Doença de von Willebrand (vWD):

Apesar de muitos autores descreverem a vWD no capítulo das doenças funcionais plaquetárias, preferimos comenta-lo entre as coagulopatias.

É uma das mais freqüentes desordens hemorrágicas hereditárias, com uma prevalência de 0.9-1.3% na população em todo o mundo e de pouco menos de 3% nos Estados Unidos, segundo John D. Geil.

De grande destaque na vWD é a grande discrepância existente na história das hemorragias entre os familiares e, até mesmo, no paciente em diferentes períodos. Também não existe relação precisa entre a intensidade dos fenômenos hemorrágicos e os dados laboratoriais. No estudo de Biron e colaboradores, apenas 8 de 30 pacientes, com o tipo 1 da vWD, com redução significante do nível de vWF(ag), apresentavam hemorragia na HDA ou na HF.

Os distúrbios hemostáticos referentes à vWD estão relacionados às alterações surgidas na síntese do vWF e na conseqüente anormalidade funcional.

O vWF é uma grande glicoproteina sintetizada pela célula endotelial vascular e pelo megacariócito. Em situações de normalidade, o vWF das plaquetas não é incorporado ao "pool" plasmático circulante.
O vWF, derivado da célula endotelial, forma no plasma um complexo não-covalente com o FVIII coagulante (FVIII-C). Essa ligação dá estabilidade ao FVIII-C com aumento de sua sobrevida, protege o referido fator contra a inativação proteolítica e o potencializa na atividade como co-fator no mecanismo de coagulação.
A outra grande função do vWF é a de promover a adesividade plaquetária ao subendotélio, conforme descrevemos na seção Hemostasia (ver MENU).
Essas funções do vWF decorrem da estrutura peculiar da molécula, já que é formada por multímeros de diversos tamanhos (pequenos, intermediários e grandes). Os multímeros de maior tamanho são os que propiciam a ligação das plaquetas ao subendotélio, enquanto que os de menor tamanho são os que favorecem a ligação entre o vWF e o FVIII-C.

Outro ponto importante que precisa ser ressaltado para entendermos os testes diagnósticos dessa doença é o do "shear rate/stress" que definimos na seção Hemostasia, mas repetiremos aqui dada a sua importância para a compreensão do assunto.

"Shear rate" corresponde à interface do sangue circulante com a parede vascular. Em outras palavras, é a velocidade de deslocamento da lâmina de sangue circulante, mais próxima à parede do vaso. As plaquetas dessa camada de sangue são, justamente, aquelas que entrarão em contato com o subendotélio exposto após a lesão do endotélio.
"Shear stress" representa a força de colisão das plaquetas entre si e da plaqueta com uma superfície, por exemplo, a fibrila de colágeno. No fenômeno de "shear rate" as plaquetas são arrastadas em uma superfície; já no "shear stress" elas se chocam com a superfície.
A importância disso está em que a atividade de ligação do vWF aumenta com o aumento do "shear rate/stress".

Um novo teste, prático, está sendo empregado para o diagnóstico da vWD - é o tempo de oclusão. Para tal, é empregado um aparelho, o PFA-100 (Platelet Function Analyzer, Dade International, Massy, France) para pesquisar defeito de adesividade e agregação plaquetárias, particularmente na vWD.
O sangue total citratado é aspirado, sob alto "shear rate" (5000-6000 dyn/cm
2 através de um tubo capilar para uma abertura central (diâmetro de 150 µm) de uma membrana revestida com colágeno e com agonistas plaquetários (epinefrina e ADP). O tempo requerido para obter oclusão da abertura, por um trombo plaquetário, é denominado tempo de oclusão (TO) ["closure time"].
O analizador é bem adaptado para testes de rotina, tendo as vantagens da simplicidade, da fácil execução, do emprego de variado "shear rate/stress", reprodução do ambiente "in vivo", e demonstrou grande sensibilidade e especificidade (ver bibliografia).

Com o exposto até agora, estamos em condição de interpretar os testes, os quais apresentamos no Quadro 1, para o esclarecimento diagnóstico da vWD.

Dosagem do FVIII-C É a dosagem do FVIII-C que se encontra acoplado ao vWF
Avaliação do vWF(ag) Trata-se da fração antigênica da molécula que é avaliada pela imunoeletroforese quantitativa usando-se anticorpo específico (técnica de Laurel). Normal = 50-150%. Recentemente, têm sido empregados testes de maior sensibilidade como o de ELISA e o de citometria de fluxo.
Avaliação do vW:R CoF É a avaliação da atividade da ristocetina como cofator. Verifica-se a agregação de plaquetas normais, fixadas em formol, pela ristocetina e plasma do paciente. A ristocetina é empregada em concentração padrão e o plasma do paciente em quantidades diversas. Compara-se com a aglutinação usando-se quantidades diversas de plasma normal. Se houver defeito relativo ao vWF do paciente, a agregação com a ristocetina será anormal. Normal = 60-150%
RIPA RIPA (aggregation of platelet-rich plasma with ristocetin). É o registro, no agregômetro, da agregação plaquetária usando-se plasma do paciente rico em plaquetas, com adição de ristocetina em quantidade de 1.2 mg/mL De acordo com a pesquisa, quantidades diversas podem ser empregadas
Estudo dos multímeros do vWF Determinação dos multímeros por meio da eletroforese de SDS-agarose (sulfato de dodecyl sódico-agarose)
Tempo de oclusão Tempo de oclusão determinado pelo analizador PFA-100. Foram fornecidos detalhes anteriormente

Quadro 1: Testes laboratoriais para diagnóstico da doença de von Willebrand
Suspeitamos de vWD quando, além de hemorragia apresentada pelo paciente, particularmente, em cirurgia e pela mucosa, houver relato de sangramento em familiares e aumento do tempo de sangramento com plaquetometria normal.

Ao efetuarmos os exames apresentados no Quadro 1, confirmaremos o diagnóstico de doença de von Willebrand se houver diminuição do nível de FVIII-C, diminuição proporcional do nível de vWF(ag), alteração da curva de agregação com ristocetina (RIPA) e baixo percentual da atividade da ristocetina como cofator.
Se pudermos contar com o analizador PFA-100, veremos que o tempo de oclusão (TO) está ampliado, o que colabora para a confirmação diagnóstica.

Confirmado o diagnóstico, partiremos para a determinação do tipo da vWD promovendo o estudo dos multímeros do vWF por meio da eletroforese de SDS-agarose.
Com a eletroforese, ao determinarmos as características dos multímeros, podemos caracterizar a vWD nos tipos apresentados no Quadro 2.


Tipos da vWD Principais características
Doença Tipo I Autossômica dominante. Cerca de 70-80% dos pacientes estão nesse grupo. Diminuição discreta ou moderada do vWF no plasma, porém, estruturalmente normal. Há diminuição paralela do vWF(ag), FVIII-C e da Atividade Ristocetina-cofator
Doença Tipo II
Subtipos:
2A, 2B, 2C, 2M, 2N
Cerca de 15-20% dos pacientes estão nesse grupo. Alteração qualitativa da molécula de vWF com níveis normais ou pouco diminuidos do referido fator:

2A: Autossômica dominante. Decréscimo quantitativo, parcial, dos multímeros da molécula de vWF, de grande e intermediário tamanhos. Há diminuição da interação com as plaquetas. A quantidade do vWF(ag) e do FVIII-C estão normais ou próximos do normal. A atividade da ristocetina como cofator está bastante reduzida.

2B: Autossômica dominante. Há diminuição da proporção dos grandes multímeros e aumento da proporção dos pequenos multímeros. Nesse tipo, a interação do vWF com a plaqueta está aumentada levando à agregação intravascular. As plaquetas agregadas são afastadas rapidamente da circulação o que leva à trombocitopenia intermitente. Os níveis do FVIII-C e do vWF são variáveis. A agregação das plaquetas pela ristocetina está aumentada, mesmo em baixas doses dessa substância.

2C: Autossômica recessiva. Decréscimo da proporção dos grandes multímeros, porém qualitativamente anormais. Aumento dos pequenos multímeros. A atividade da ristocetina como cofator está diminuida e em desproporção com a redução do vWF.

2M: Tem alteração laboratorial semelhante a do tipo 2A. Os grandes multímeros não estão diminuidos, mas o vWF interage pouco com as plaquetas. Há diminuição da atividade do vWF, mas estão normais o vWF(ag)e do FVIII-C.

2N: Autossômica recessiva. A principal característica desse tipo é intensa diminuição da afinidade do vWF pelo FVIII-C. Conseqüentemente, o FVIII-C não fica mais protegido da rápida proteólise, o que resulta na diminuição de cerca de 5% do nível desse fator em relação ao nível normal. O vWF(ag) e o vWR-CoF estão freqüentemente normais.

Doença Tipo III Autossômica recessiva. Total deficiência do vWF, porém, sem alteração estrutural da molécula. Esse tipo apresenta uma incidência de 1 em 1 milhâo de pessoas. Caracteriza-se pela ausênia da agregação plaquetária pela ristocetina (RIPA), intenso decréscimo do nível do vWF(ag), indetectavel atividade da ristocetina como cofator e nível de FVIII-C muito baixo

Quadro 2: Tipos da doença de von Willebrand

Podemos deduzir do exposto que a doença de von Willebrand se constitui em uma verdadeira armadilha para o médico, já que as observações que apresentamos a seguir podem afastar a hipótese de uma diátese hemorrágica na avaliação pré-operatória:

1 - Seus principais sintomas são hemorragias vistas, freqüentemente, em outras patologias ou sem causa determinada, como epistaxe recorrente, menorragia, pós-extração dentária, pós amidalectomia, alguns dias após o parto.

2 - O paciente pode não apresentar qualquer história pregressa de sangramento.

3 - Pode não haver história de hemorragia nos membros consangüíneos da família.

4 - Os exames pré-operatórios para pesquisa de distúrbio hemostático podem ser normais.

Também verificamos a existência de discrepância muito grande nos dados dos diversos autores sobre a prevalência da doença.
Hardin cita a mais baixa prevalência - 0.1%, Aledort - 1% e Geil - 0.9-1.3% na população mundial e pouco menos de 3% nos Estados Unidos.
É fácil deduzir que essa discrepância decorre da dificuldade em se pensar na doença pelas razões expostas nos itens anteriores, e pela indisponibilidade de maiores recursos diagnósticos laboratoriais em muitos paises.

É nossa impressão que o percentual mais elevado está mais próximo da realidade e que a atenção do médico, dirigida para a doença de von Willebrand no pré-operatório, deve ser redobrada.

Adendo: Síndrome de von Willebrand Adquirida (vWS)

Apesar de ser um distúrbio adquirido, vamos comenta-lo nesse item, em virtude da semelhança, clínica e laboratorial, com a vWD que é um distúrbio hereditário.
A vWS, como na vWD, decorre de alterações quantitativas e/ou qualitativas da molécula do vWF.
È um distúrbio muito raro, o que torna mais difícil sua diferenciação com o correspondente hereditário que, como dissemos, chega a 1% da popuação mundial e a pouco menos de 3% da população dos Estados Unidos.
A vWS reproduz várias alterações laboratoriais vistas na vWD, tais como prolongamento do tempo de sangramento, diminuição do FVIII-C, da ristocetina como cofator (vWF:R CoF), do vWF(ag) e da aglutinação plaquetária induzida pela ristocetina (RIPA).
Já que o estudo laboratorial não é suficente para fazer a diferenciação entre a vWD e a vWS, é importante constatar a inexistência de história pregressa de hemorragia no paciente, e de alterações dos exames característicos da vWD nos familiares.

A vWS tem sido descrita em associação com: gamopatias monoclonais, linfomas, tumor de Wilms, mieloma, doença cardíaca congênita, lupus eritematoso sistêmico, angiodisplasia, desordens convulsivas tratadas pelo ácido valpróico e hipotireoidismo. Cerca de um terço dos casos publicados estão associados à gamopatia monoclonal, mas na maioria dos casos o mecanismo responsavel pela vWS não está claramente definido.

Segundo Mannucci e colaboradores (1984), o vWF é removido rapidamente do sangue por mecanismos diversos: 1- auto-anticorpos específicos que inativam o vWF, 2- anticorpos inespecíficos que formam imuno-complexos circulantes com o vWF o que favorece seu afastamento pelos macrófagos, 3- absorção do vWF por células malígnas e 4- por degradação proteolítica do vWF. Adicionamos um 5º mecanismo, citado por Gilbert C. Wite e por Hiroshi Mohri, o da absorção seletiva de multímeros, de alto e intermediário peso molecular, em pacientes com doença cardíaca, particularmente com defeito do septo ventricular ou da válvula. Nesse último caso, havendo deficiência dos referidos multímeros, o distúrbio assemelha-se ao tipo hereditário vWD 2B.

Deficiência de outros fatores da coagulação:

Como foi exposto anteriormente, a partir dos testes de rotina para o estudo da hemostasia, podemos desconfiar da redução do nível de um ou de vários fatores da coagulação. Para esclarecimento, partiremos para a dosagem do fator com base no teste de rotina alterado.
A dosagem do fator da coagulação é de fácil execução, estando ao alcance de qualquer laboratório.
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